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A substituição do Coronel

O livro O Cristo do Povo, que me foi presenteado pelo padre Prata, conforme relatei no meu último artigo, dedica seis páginas a investigar alguns fatos ocorridos

Mozart Lacerda Filho
Publicado em 03/08/2018 às 10:18Atualizado em 17/12/2022 às 04:13
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O livro O Cristo do Povo, que me foi presenteado pelo padre Prata, conforme relatei no meu último artigo, dedica seis páginas a investigar alguns fatos ocorridos em Uberaba no pós golpe civil-militar de 1964. Mais especificamente, a investigação recai sobre a resistência oferecida pelo clero local aos abusos do governo recém-empossado.

O governo dos militares usou do artifício de abrir Inquéritos Policiais Militares (IPM) a quem quer que fosse. E, na enxurrada de IPMs impetrados em Uberaba, a Faculdade de Filosofia da extinta Faculdade São Tomás de Aquino (FISTA) era o alvo predileto. É fácil entender os motivos: os professores mais críticos aos abusos dos militares e os estudantes mais combativos lá estavam. Além disso, a FISTA possuía um movimento estudantil bastante organizado.

É por isso que os professores e religiosos Juvenal Arduini Bizinotto e Tomás Prata foram presos e tiveram que dar explicações ao comando revolucionário. Freiras e outros religiosos também foram perseguidos.

Relata Márcio Moreira Alves, nessa obra, que o Arcebispo Dom Alexandre Gonçalves do Amaral teve papel decisivo na defesa contra as prisões ocorridas em Uberaba. Para entender o sucesso da intervenção de Dom Alexandre, é necessário que compreendamos a importância da Igreja em Uberaba e o caráter de seu bispo.

Além da FISTA, as irmãs dominicanas dirigiam em Uberaba um dos mais bem equipados hospitais do interior do Brasil. O maior ginásio da época também estava sob os cuidados dos religiosos, e o maior colégio feminino da região era administrado pelas irmãs dominicanas. Além disso, o Correio Católico era um importante jornal da cidade.

E Dom Alexandre era, nesse tempo, a personificação do poder exercido pela Igreja. Aos 33 anos, assumiu a arquidiocese e, à medida que o tempo passava, sua autoridade se consolidava. Quando da chegada dos militares ao poder, tentou, ao seu modo, manter a autonomia da Igreja frente às intervenções dos órgãos de repressão.

Como exemplo desse cuidado, podemos citar o seguinte episódio. Ainda segundo Alves, quando, no dia 10 de abril de 1964, a Polícia Militar de Uberaba prendeu um redator do Correio Católico, a cidade passou a fervilhar com boatos de próximas prisões de padres e freiras.

A organização feminina de extrema-direita intitulada CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) exigia o fechamento da Faculdade de Filosofia, que era acusada de ser um antro de comunistas. Como medida preventiva, o Correio Católico publicou naquele dia uma entrevista de Dom Alexandre na qual reiterou "que os vencedores não devem extremar-se" e advertiu: "não assistirei passivo a qualquer tentativa de se humilhar sacerdotes e membros da Ação Católica e instituições religiosas" (ALVES, p. 267).

Na manhã de 11 de abril, o coronel Pedro Nazaré, comandante do 4º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar de Minas Gerais e encarregado dos inquéritos em Uberaba, teve a maior surpresa de sua vida: viu entrar, quartel a dentro, todo um batalhão de padres, tendo a frente um Dom Alexandre que, ainda conforme relato de Márcio Moreira Alves, completamente irado, passou uma descompostura no coronel diante de toda a tropa.

Argumentava Dom Alexandre que a Igreja constituía um Estado independente e era regida por leis próprias, reconhecidas por diversos países. Por isso, qualquer prisão a um de seus membros teria que ser feita com o consenso daquele que dirige tal Estado, ou seja, o Papa. E não era o que ali acontecia.

Resultado dessa contenda: um mês depois, o coronel seria substituído.

(*) doutorando em História pela Unesp/Franca; professor do Colégio Cenecista Dr. José Ferreira e da Facthus

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